Em entrevista o mestre italiano dos quadrinhos eróticos, Milo Manara, lamenta que desenhos sensuais ainda possam causar escândalo.
Milo com a versão italiana
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De um mestre para o outro: a nova empreitada do italiano Milo Manara é uma biografia em quadrinhos sobre seu conterrâneo Caravaggio, um dos maiores pintores da História e também um dos mais controversos. Intitulado “Caravaggio - A morte da virgem”, o primeiro volume do trabalho acaba de ter seu lançamento mundial (no Brasil, pela editora Veneta), abrindo uma trama que envolve assassinatos, debates sobre sexualidade e uma ambientação detalhada da Roma do início do século XVII (o segundo volume ainda não tem previsão de lançamento). Em entrevista ao Globo, Manara, de 69 anos, explicou como fez para elucidar as incertezas acerca de Caravaggio.
Por que o senhor escolheu Caravaggio como tema para seu livro?
Caravaggio foi um grande artista que mudou a história da arte, mas também foi um homem ao mesmo tempo violento e apaixonado, que viveu intensamente. Alguém pronto a duelar com qualquer inimigo, mas também capaz de grande ternura com seus amigos, seus modelos e os miseráveis. Ele não suportava a arrogância e o poder. E eu acho importante contarmos a história de rebeldes, daqueles que vão contra a corrente, especialmente nos difíceis dias de hoje, em que prevalece uma sensação de que estamos à mercê de um poder financeiro que não conseguimos identificar, mas que controla as nossas vidas e as vidas de povos inteiros.
Existem várias biografias sobre Caravaggio, embora apenas uma tenha sido escrita por um contemporâneo que o conheceu. Ele se chamava Giovanni Baglione, um pintor rival, e seu livro é muito curto e não muito benevolente. Mas existem outros documentos. Por exemplo, Caravaggio tinha uma personalidade turbulenta e foi preso muitas vezes e, felizmente, os relatórios policiais com seus interrogatórios e depoimentos de testemunhas foram preservados. É a partir de relatos como esses que podemos aprender muito sobre a vida agitada do grande gênio. Já no campo visual, há muitas pinturas, gravuras e desenhos relativos a esse período. Não foi muito difícil mergulhar no ambiente daquela época, o que me ajudou a preencher as lacunas da vida de Caravaggio, respeitando a verdade dos fatos e adicionando apenas algumas situações, todas plausíveis e até prováveis. Posso dizer que tudo o que adicionei no livro não pode ser provado como falso, embora não haja nenhuma evidência de que realmente tenha acontecido.
Pretendo manter a mesma linha de pensamento: vou respeitar a verdade histórica documentada, mas também dar a ela minha interpretação. Depois de tanto tempo passado na companhia de Caravaggio, eu às vezes me sinto tentado a perguntar diretamente a ele como as coisas ocorreram. Vai que uma hora ele aparece para me responder...
Capa da versão brasileira
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O senhor chegou a uma conclusão sobre a sexualidade do pintor? Há estudos que apontam para sua homossexualidade. É possível ter certeza?
A crença acerca da homossexualidade de Caravaggio é baseada no que escreveu Giovanni Baglione, mas provavelmente o biógrafo queria se vingar de um poema satírico e feroz que o próprio Caravaggio fez. Pelo poema, Baglione processou Caravaggio e o apontou como homossexual perante um juiz. Deve-se ter em conta que, no período, a homossexualidade era um crime grave que poderia ser punido com a morte. Mas Caravaggio não sofreu qualquer consequência do julgamento, o que indica que a acusação não foi considerada verdadeira. Já outra razão pela qual alguns acreditam que Caravaggio foi homossexual é a presença em suas pinturas de rapazes nus que se mostravam com descarada sensualidade. Mas precisamos considerar que as pinturas foram feitas por encomenda. Caravaggio pintou o que príncipes e cardeais pediam e era pago por isso. O fato de que esses rapazes expressem tanta sensualidade em seus quadros só mostra o quanto Caravaggio foi um grande artista, não que teria sido homossexual. Tendo a acreditar que a sexualidade de Caravaggio era exercida em sua arte, sensual e poderosa. E ele foi um pintor extraordinário de mulheres. Suas figuras femininas estão entre as mais bonitas, sedutoras e modernas em toda a história da arte, embora nunca nuas.
Em sua carreira, o senhor também já foi criticado pelo conteúdo de suas histórias e a natureza de seus desenhos. No ano passado, por exemplo, houve uma polêmica com a capa da revista da Mulher-Aranha, feita para a Marvel, considerada pelos fãs sensual em excesso. Como o senhor explica o que aconteceu?
Aquilo me surpreendeu. Não achava que um desenho ainda pudesse chocar. Com todas as imagens muito mais explícitas que podem ser vistas hoje em todos os lugares, eu nunca teria esperado um barulho como aquele. Além do mais, eu não acho que a celebração e a glorificação da beleza da forma feminina possam ser escandalosas.
Hoje, por causa da internet, qualquer pessoa pode ter acesso a imagens eróticas. Isso reduziu o interesse nos quadrinhos eróticos?
Acho que não, ou ao menos espero que não. Os quadrinhos, por sua natureza, são o reino da fantasia. Sabemos bem que nosso órgão sexual mais importante é o cérebro. E é o cérebro, a imaginação, que transforma a história em quadrinhos. Que fique claro que não tenho nada contra, mas o erotismo da internet fala mais ao corpo do que à mente. Então não acho que isso possa reduzir o interesse nos quadrinhos.
Muita gente imagina o senhor como um velho tarado que desenha quadrinhos. Tem uma mensagem para essas pessoas?
Posso citar John Le Carré: “Sim, eu sou um maníaco sexual normal, como todos”. Já quanto ao “velho”, não posso fazer nada, infelizmente. Mas tampouco acho que seja um insulto.
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Fonte: O Globo